O Povo Puri em Viçosa
História da formação do município de Viçosa-MG e a presença dos indígenas Puri
Publicado em 01/01/2024 09:41 - Atualizado em 19/04/2024 17:37
A história do município de Viçosa-MG ultrapassa os seus mais de 150 anos de fundação (30/09/1871); antes da presença dos colonizadores e escravizados, esse território era povoado por diversos povos indígenas, como os Puri, Coroados, Coropós, Croatos e Botocudos.
As expedições em busca de metais preciosos no interior do continente americano ocuparam o imaginário e os esforços dos colonizadores desde o início da colonização e, no final do século XVII, partindo da Capitania de São Paulo, adentraram para as terras além da Serra da Mantiqueira, onde encontraram ouro e pedras preciosas. Mais tarde, essas terras seriam chamadas de Minas, passando a ser Capitania em 1720, dividida, posteriormente, nas comarcas Vila Rica, Sabará, Rio das Mortes e Serro Frio.
As terras à leste da Comarca de Vila Rica eram chamadas de sertões, por serem habitadas por indígenas, quilombolas e degredados; até meados do século XVIII, havia uma pequena presença de colonos. Além disso, a região Leste da zona da mineradora era denominada de “Sertão Proibido”, devido à proibição Régia de ocupação, medida para impedir o extravio de ouro. O “Sertão Proibido” é atualmente as regiões da Zona da Mata Mineira e do Vale do Rio Doce.
Ao longo do século XVIII, a fronteira colonial foi se expandindo para essa região dos sertões proibidos, com a fundação de aldeamentos indígenas previstos pelo Diretório Pombalino (1755), que visava a dominação dos indígenas por meio da sedentarização, catequização e trabalho. Essa expansão e fundação de aldeamentos, vale ressaltar, não aconteceu sem a resistência dos indígenas que buscavam defender seu território. Entre 1760 e 1808, invertidas militares da Coroa portuguesa contra os indígenas da região Leste das Minas resultaram em migrações, escravização, sequestro de crianças, abusos contra as mulheres indígenas, torturas e mortes, aspirando o aniquilamento físico e cultural dos povos indígenas resistente ao projeto colonizador (RESENDE, 2007; PARAÍSO, 2007; BRAGA, 2009; MOREIRA, 2020).
A vinda da família Real para a colônia, em 1808, aumentou exponencialmente a violência contra os povos indígenas do sertão leste mineiro, por meio da promulgação da “Declaração de Guerra Justa” contra os indígenas genericamente chamados de Botocudos, em 13 de maio de 1808, ofensiva que perdurou até 1831. Nesses 23 anos de guerra contra os indígenas, os Puri, Coroado, Croato e Coropós não-aldeados também foram perseguidos, escravizados e mortos pelos colonizadores.
A cidade de Viçosa-MG teve seu primeiro núcleo de povoamento em 1800, ano em que foi concedida ao Padre Francisco José da Silva uma sesmaria para a fundação de uma capela em homenagem à Nossa Senhora dos Passos. Em 1813, com o crescimento da povoação, inicia a fundação da Igreja Matriz de Santa Rita de Cássia e o arraial passa a ser chamado de Santa Rita do Turvo. Em 1831, o arraial foi elevado à vila, em decorrência de seu crescimento, pertencendo à Freguesia do Pomba até 1871.
O primeiro livro de registro de assentos de batismo, casamento e óbitos da Igreja Matriz de Santa Rita de Cássia é de 1813, ano de fundação da matriz; nele podemos verificar o batismo de crianças Puri por suas mães indígenas. Nos registros, são assinalados a cor/etnia e nome português com o intuito de promover a “integração” dos indígenas às normas da sociedade dominante, impondo um silenciamento por meio do nome a essas crianças. Assim, nos documentos administrativos, os nomes pessoais e etnônimos indígenas vão desaparecendo progressivamente desses registros, o que contribui para reforçar a ideia do desaparecimento indígena, quando, na realidade, os indígenas estavam sendo nomeados de outras formas, como pardo, mestiço e caboclo. Além disso, diante de toda violência advinda da colonização, cria-se o estigma social sobre ser identificado como “índio”, que poderia, por essa identificação social, ser perseguido, escravizado e morto por sua identidade e cultura; por isso, muitos foram forçados a migrar para outras regiões e ocultar sua identidade para sobreviver.
Entre 1813 e 1814, o naturalista George W. Freyreiss realizou expedições ao interior do Brasil e visitou diversas aldeias indígenas Puri; uma delas foi Santa Rita do Turvo e o responsável por intermediar esse encontro foi o Diretor de Índios Guido Thomas Marliere, executor do aldeamento dos indígenas entre 1813 a 1831. Nessa obra, Freyreiss, investido de seu olhar etnocêntrico, descreveu hábitos alimentares, comportamentos, modos de vida e rituais. Segundo José Aguiar (2010), os Puri se organizavam em pequenos grupos familiares com aproximadamente 30 ou 40 pessoas, vivendo em aldeias distantes de outros parentes. Em ocasiões ritualísticas ou guerra, uniam-se as aldeias para a preparação e celebração. Eram povos não-sedentarizados, pescavam, caçavam, plantavam milho e mandioca e coletavam frutas e ervas. Os xamãs eram responsáveis pela unidade social, cura e proteção.
Pesquisas sobre a ocupação da região e as origens do Povo Puri ainda estão sendo desenvolvidas, contudo, de acordo com o historiador Renato Venâncio (1997), os indígenas Puri são descendentes dos indígenas Goitácas, vindos do Norte Fluminense e do Vale do Paraíba, que se deslocaram para a região da Zona da Mata Mineira em razão da escravidão, doenças e fome proveniente da guerra entre portugueses e franceses no século XVI. Além disso, para o memorialista Oiliam José (1965), os Puri, Coroados, Coropós e Croatos seriam um mesmo povo que se dividiu séculos antes da colonização, mas que guardavam semelhanças linguísticas, culturais e organizativas entre si. Ademais, os etnônimos Coropós e Croatos seriam uma corruptela do nome Coroado.
As cidades da Zona da Mata Mineira foram, em sua maioria, fundadas no final do século XVIII e meados do século XIX, em razão da diversificação da economia decorrente da crise mineradora e a da cultura cafeeira na região. As cidades de Rio Pomba, Muriaé e Visconde do Rio Branco são exemplos de cidades que foram fundadas a partir de aldeamentos indígenas no século XVIII e, em meados do século XIX, foram elevadas a vilas, devido à crescente invasão de colonos nas terras dos aldeamentos, contribuindo para o discurso de mestiçagem e, consequentemente, a perda cultural indígena. Todavia, esse discurso de perda cultural, ocasionado pela mestiçagem, parte dos pressupostos teóricos das teorias raciais, como o Darwinismo social, vigentes no século XIX; essas teorias compreendiam a cultura e etnicidade como elementos estáticos e “puros”. Nos estudos sobre identidade, etnia e cultura realizados pela Antropologia e Psicologia, essa noção de cultura e identidade como elementos estáticos e imutáveis já foram debatidas e superadas, apontando o caráter mutável, dialógico e construtivo da cultura e identidade (ALBERTO BARTOLOMÉ, 2006).
Apesar disso, ao longo do século XIX, esse discurso de mestiçagem e perda cultural, assim como a violência contra os Puri, fizeram com que perdessem seu território. Conforme a legislação colonial, as terras dos aldeamentos pertenciam, por direito, aos povos indígenas, pois o direito originário de ocupação da terra, o “indigenato”, era reconhecido pelas leis de 1607 e 1755 (O Diretório Pombalino), assim como a liberdade indígena. Os descendentes dos indígenas dos aldeamentos tiveram seus direitos de posse das terras desrespeitados pelos colonos e, desta forma, cristalizou-se no discurso histórico tradicional o extermínio indígena.
A desterritorialização do povo Puri, desencadeada por constantes movimentos de deslocamento, revela um caminho marcado por mudanças forçadas e divisões territoriais dos indivíduos e comunidades, levando-os a sobreviver e lutar em espaços reduzidos, entre áreas urbanas e grandes empreendimentos. Ao longo de muitos anos e persistindo até os dias atuais, essa situação colocou esses indígenas em uma batalha contínua pela existência em circunstâncias difíceis. Fechados por atividades prejudiciais, como mineração, expansão agrícola e urbanização, o povo Puri da região da Zona da Mata viu seus territórios tradicionais, fundamentais para sua cultura e espiritualidade, serem desmatados, modificados e diminuídos. Essa redução territorial não apenas limitou o acesso a recursos essenciais para sua sobrevivência, mas também aumentou a fragilidade de suas comunidades.
A estrutura econômica e social que as famílias Puri mantinham, baseada na conexão plena com suas terras ancestrais, entrou em colapso devido à apropriação e divisão de suas áreas de uso e migração. Isso resultou na exclusão oficial da etnia a partir do século XVIII, quando praticamente desapareceu dos registros governamentais. Esse apagamento persiste até os dias de hoje, mantendo esses indígenas à margem da sociedade nacional. Há dificuldades de acesso a políticas públicas adequadas para esse grupo, que vive em condições precárias de integração e que não consideram nem abrangem sua singularidade cultural, social e territorial.
A tradição oral desempenha um papel central na formação étnica do povo Puri, atuando como um elo entre o passado e o presente, preservando a memória e a herança cultural. Essa transmissão verbal de saberes, valores e costumes ancestrais, transmitida de uma geração para outra, é crucial para a preservação da identidade dessa comunidade, resistindo aos esforços externos de assimilação e perda cultural e assegurando a continuidade da essência do povo ao longo do tempo. Apesar da falta de reconhecimento oficial e da definição clara de seus territórios, as famílias Puri da região da Zona da Mata mineira mantêm uma profunda ligação com sua terra, que vai além da simples posse material. Esta conexão abrange dimensões espirituais, culturais e de subsistência, essenciais para sua identidade.
Portanto, mesmo com a violência e o apagamento que foram submetidos, nos últimos 30 anos, vemos retomar a identidade Puri, como resultado de um longo processo de luta, resistência e valorização da ancestralidade indígena, por meio das memórias preservadas na oralidade familiar, além de pesquisas sobre a história regional e a realização de atividades educativas.
Referências
AGUIAR, José Otávio. Quem eram os índios Puri-Coroado da mata central de Minas Gerais no início dos oitocentos? Contribuições dos relatos de Eschwege e Freyreiss para uma polêmica (18131836). Revista Mosaico, Goiás, v. 4, n. 2, 2010.
ALBERTO BARTOLOMÉ, Miguel. (2006). As etnogêneses: velhos atores e novos papéis no cenário cultural e político. Mana, 12(1), 39–68. https://doi.org/10.1590/S0104-93132006000100002
ANDRADE, Mateus Rezende. Do lugar ao território: uma análise da formação histórica dos vales do Rio Piranga e Xopotó (Minas Gerais, 1694-1800). Diálogos-Revista do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História, v. 22, n. 1, p. 178-193, 2018.
BRAGA, Núbia Ribeiro. A GUERRA SANGUINOLENTA AOS ÍNDIOS NO SERTÃO COLONIAL. Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, [S. l.], v. 6, n. 4, p. 1–17, 2009. Disponível em: https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix/article/view/227. Acesso em: 25 mar. 2024.
MOREIRA, Vânia Maria Losada. Kruk, Kuruk, Kuruca: genocídio e tráfico de crianças no Brasil imperial. História Unisinos, v. 24, n. 3, p. 390-404, 2020.
PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. As crianças indígenas e a formação de agentes transculturais: o comércio de kurukas na Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais. Índios do Nordeste: Resistência, memória, etnografia, v. 8, p. 51, 2007.
RESENDE, Maria Leônia Chaves de; LANGFUR, Hal. Minas Gerais indígena: a resistência dos índios nos sertões e nas vilas de El-Rei. Tempo, v. 12, p. 5-22, 2007.
VENÂNCIO, Renato P. Os Últimos Carijós: Escravidão Indígena em Minas Gerais: 1711-1725. Revista Brasileira de História [Internet]. 1997;17(34):165–81. Available from: https://doi.org/10.1590/S0102-01881997000200009
por Secretaria de Cultura